Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do
jantar.
O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto
ia pedir-lhe um auxílio.
Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
Não fumo, respondeu o outro.
Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
Como?
Já disse. Vai passando o relógio.
Mas ...
Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça
quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de
dono.
Agora posso continuar?
Continuar o quê?
O passeio. Eu estava passeando, não viu?
Vi, sim. Espera um pouco.
Esperar o quê?
Passa a carteira.
Mas...
Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio
qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
Diga.
Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o
produto do assalto?
Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa
do cara. Sou civilizado, manja?
Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me
faz falta, palavra de honra.
Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
Não precisa, não precisa.
Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me
assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
Claro.
Você, o assaltado. Certo?
Confere.
Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois
mil.
Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais
dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu.
Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não
tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
Tá bom, não se discute.
Vamos, procure nos... nos escaninhos.
Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros.
Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
Deixe ao menos tirar os documentos?
Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com
você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
Nem uma de quinhentos? Uma só.
Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso
você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom,
tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé
Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora
Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.